quarta-feira, 4 de março de 2009

Cadernos da Infância I

Lembro-me de minha avó, num tempo que não era tempo, numa noite iluminada de pirilampos, o som da pedra contra pedra dilacerando o milho.

Da cozinha vinha aquele cheiro mágico de um incenso único, o eucalipto e a esteva a ficarem rubros na lareira e sobre eles o tacho de cobre, negro como a noite que os pirilampos iluminavam, onde ondeava o xarém, que não me alimentava tanto quanto as suas histórias.

À porta de casa a rosa mosqueta, perfumando os dias agrestes, tão branca quanto a imaculada cal que tingia as paredes de taipa. No interior, a cal ganhava cor, confundia-se com o fumo, era cor-de-vinho, amarelo torrado e tinha um cheiro e sabor como o de frutos que já não há.

As videiras sobre a janela e os narcisos em frente davam-lhe um ar de tragédia grega.

Ainda lá estão as pedras da calçada, que foram ganhando forma sob os nossos passos e onde tantas vezes foi derramado sal (seria do mar ou das nossas lágrimas?) para impedir as ervas de crescer.

Tudo lá está, apenas nós não.

4 comentários:

Tita disse...

Quando comecei a ler a tuas palavras veio-me á ideia um livro que ambas conhecemos: como água para chocolate.
o certo é que as coisas materiais ficam, mas as pessoas só permanecem na nossa recordação. e enquanto a recordação subsistir assim essa pessoa sobrevive. e quem sabe se realmente não foram as nossas lágrimas que secaram as ervas da calçada.

obrigada pelo comentário. mas fiquei a pensar: dissseste que o caminho de casa de um amigo até á nossa é o mesmo que de nossa casa até á do amigo. Não concordo totalmente: posso até saber ocaminho para a casa de um amigo, mas o problemas é quanod esse amigo esquece e ignora o caminho para a nossa.

bjs

Anónimo disse...

Bem, comentando o teu post, deu-me vontade de chorar porque não tive uma avó que me contasse histórias, mas tive uma infância de histórias de recordações de tanta coisa boa. Adorei este texto. Espero que continues a escrever assim, trazendo sempre à nossa memória as coisas boas que a nossa vida teve.

Um bjinho
F.M.

Artur R. Gonçalves disse...

Nós estamos lá com as imagens que o tal tempo que não era tempo nos gravou na memória.

Isália disse...

Adorei as tuas palavras, mas vindo de ti, não se podia esperar outra coisa. tudo isto nos traz boas memórias, a nossa infancia de um tempo que passou, mas que nao se apagou. Essas recordações mantém-se com o passar do tempo.